Por Rafael Vettori, produtor cultural, sócio do Festival Path e do átomo cc.
Como bom escorpiano, sou bastante passional. Mergulho naquilo que gosto e, com o passar dos anos, tenho me condicionado a sempre buscar novas paixões. É minha receita para a eterna juventude, pelo menos de espírito. Aos 33, já me apaixonei por pessoas, causas, lugares, sabores, ofícios e profissões as mais variadas. E assim pretendo continuar até que meu tempo aqui se esgote.
Confesso que produzir o Festival Path contribuiu muito para que este meu lado curioso se desenvolvesse plenamente. Com suas cinco edições, o evento se tornou um grande caldeirão, um lugar onde é possível encontrar o que há de mais novo em vários segmentos. Ali minhas paixões platônicas ganham vida.
Para o Path pude levar assuntos que simplesmente não saem da minha cabeça: Parque Minhocão, Parque Augusta, florestas urbanas, construções verdes, novas matrizes energéticas (limpas), carros elétricos, rios urbanos soterrados e muitos outros. Quanto mais procuro, mais encontro e mais me apaixono.
Nessas andanças de curador/produtor, encontrei Ricardo Cardim. Primeiro virtualmente, pelo Facebook. De pronto fiquei obcecado com seu trabalho: corajoso e extremamente técnico, ele dá a cara a tapa a cada plantio que realiza. Pelas suas mãos, nesguinhas de terrenos abandonados viram florestas de bolso e a cidade vai ganhando sombras e ar puro. Sua intenção é recompor a flora original de São Paulo, ou seja, a mata atlântica. E não faltam seguidores e entusiastas, já que os plantios atraem cada vez mais gente.
Tive vontade de ser como ele: um herói verde que arrebanha multidões, plantador de árvores incansável na selva de pedra, criador de parques e defensor de espécies nativas. Minha cabeça vai longe nessa horas, eu sei. Não conhecia pessoalmente Ricardo, mas já estava apaixonado. Foi então que surgiu a ideia de entrevista-lo.
Marcamos em seu escritório, na fétida porém arborizada Marginal Pinheiros. Minha ansiedade era tanta que me distraí e fui parar no conjunto errado onde, por coincidência, havia também um Ricardo. Me pediram para esperar e serviram café. Alternando minha atenção entre o Candy Crush e o entorno, observava desapontado as práticas nada ecológicas daquele escritório ultra convencional, com direito à impressora cuspindo papel sem parar. Como aquele gênio contemporâneo poderia permitir essa atrocidade? “O senhor Ricardo não está esperando nenhum Rafael” disse-me a funcionária. Mal entendido desfeito, saí correndo aliviado.
Quando saio de uma floresta que acabei de plantar, ou para lá volto, me dá uma paz interior
Ricardo, o certo, era tudo o que eu esperava e mais. Shot de café pra quebrar o gelo e começamos a entrar no mérito. Fingi que havia um roteiro pré-estabelecido para deixá-lo confortável e mostrar profissionalismo, mas a verdade é que aquela conversa seria guiada por paixões. Dele, pela causa que representa, e minha, pelo personagem complexo que ali se revelava.
Como você começou a trabalhar com plantas?
Isso nasceu comigo. Sabe o livro do bebê? Eu ainda tenho o meu e lá minha mãe fala: os principais brinquedos do Ricardo são sementes, plantas e conchas. Sempre amei a natureza. Só que Deus me fez nascer na maior cidade do Brasil, em um bairro super adensado que é Moema, e num apartamento.
Mas no meu colégio havia um bosque com resquício de Mata Atlântica. No primário eu cabulava aula para pegar sementes, enchia copos de plástico com terra e plantava essas sementes. Meu terraço era cheio de mudas. Depois lá ia eu pro Ibirapuera com minha enxadinha e saia plantando.
Ao 13 anos, quando juntei mais de 200 mudas no terraço, meu pai deu um ultimato. Então consegui um pedacinho de terra na Serra da Mantiqueira para reflorestar, parte do sítio de um tio meu.
Quando me formei no colégio, quis fazer biologia, mas minha família, que só tem advogados, foi contra. Então optei por fazer odontologia. O plano era ganhar uma grana, comprar uma fazenda e me mudar pro interior.
Depois de formado, aos 27 (hoje Ricardo tem 39), decidi mudar de vida. Comecei a ir atrás de pessoas ligadas à questão ambiental. Foram 12 anos pra fazer essa travessia profissional, que acabou este ano, quando vendi uma empresa de telhados e paredes verdes que tinha e passei a focar exclusivamente no que faço hoje (Ricardo é paisagista e ativista).
O que você sente quando planta uma floresta de bolso? Qual o sentimento que fica?
A sensação é de pagar uma dívida. Eu imagino como era o lugar antes de o homem branco chegar ali. Vejo no que transformamos aquele local, com a nossa sanha de progresso e me sinto mal.
Quando saio de uma floresta que acabei de plantar, ou para lá volto, me dá uma paz interior.
Quais são as espécies que dão mais ‘resultado’ numa floresta urbana? Aquelas que filtram mais CO2?
Com certeza são as espécies nativas regionais. Que existiam no lugar antes da urbanização. São Paulo tinha uma biodiversidade incrível, com cerrado e Mata Atlântica. Era um grande encontro de floras.
As árvores nativas evoluíram ao longo de milênios em certas condições de solo, clima, etc. Então as plantas que aqui estavam originalmente são resultado de grande evolução, e logo são as mais adaptáveis a este ambiente, mesmo que urbanizado.
São as plantas que mais eficiência têm, com maiores serviços ambientais e menor manutenção. Têm também maior chance de sobreviverem e atendem melhor à fauna.
Se você for ver, a cidade de São Paulo hoje só tem bem-te-vis, pardais, sabiás, rolinhas e maritacas (aves generalistas). Ou seja, temos pouca variedade, pois os pássaros nativos não encontram alimento. Isso se dá porque 90% da vegetação que temos na cidade é estrangeira.
Meu ponto é que o verde não pode ser trocado pelo verde, por mero capricho. Temos que respeitar a dinâmica milenar da vegetação local.
Você enfrenta algum desafio nos plantios urbanos? Alguém se incomoda com seu trabalho ou é só elogio?
Nosso maior desafio hoje é obter autorizações do poder público para os plantios. Depois, vem a obtenção de recursos, pois custa caro fazer uma floresta com qualidade, bem feita, e não para inglês ver.
Com relação à população, não temos tido qualquer dificuldade.
Vocês dão manutenção às florestas?
Damos manutenção e acompanhamos. Somos apaixonados. Se tenho 20 minutos, dou um pulo lá pra ver como é que está. Moro em uma cidade onde não consigo ter um quintal, um sítio aqui dentro. Então fiz dessas áreas meu sítio.
É muito comum encontrar nessas oito florestas que plantamos alguma pessoa que participou do plantio fazendo manutenção. Como as pessoas plantam com amor, elas veem a floresta como um filho.
Como você vê as políticas de meio ambiente no Brasil hoje? Melhor, no nosso microcosmos Paulicéia?
Começando por São Paulo: eu percebo que ainda há uma grande desconexão entre o poder público e a população. Não há políticas públicas que incentivem os cidadãos a plantar nas ruas. Pelo contrário, somos bastante cerceados.
Não entendo, por exemplo, certas normas técnicas como a de espaçamento entre árvores, que a prefeitura faz questão de aplicar. É uma norma de cartilha, essa.
Para se fazer uma floresta, temos que plantar de forma adensada, pois é a competição entre as espécies que gera a excelência de crescimento. Para a nossa proposta, de restauro de Mata Atlântica, tal norma municipal não faz sentido.
Na questão federal, o meio ambiente não é prioridade. Infelizmente, pois estamos no país mais rico em natureza do mundo, com a maior biodiversidade. São mais de 50 mil espécies de plantas.
Você conhece a hidrografia da cidade de SP? Pretende recuperar nascentes?
A vegetação nativa é indissociável da hidrologia. É preciso ter essa noção. Quando fazemos uma floresta de bolso estamos criando uma máquina de penetração de água no solo, que vai pro lençol freático, pra represa de Guarapiranga e que volta para a nossa torneira.
A pauta ambiental une mortadelas e coxinhas. Verdadeiro ou Falso?
Totalmente verdadeiro. Tivemos essa clareza recentemente, na época do impeachment da Dilma, quando as pessoas terminavam amizades por causa de política.
Realizamos um plantio com mais de 500 pessoas presentes em total harmonia. Diretores de banco trocando ferramentas (que nos plantios são comunitárias) com a galera da periferia.
Percebo que ainda há uma grande desconexão entre o poder público e a população. Não há políticas públicas que incentivem os cidadãos a plantar nas ruas.
Planta na periferia também?
É muito difícil fazer plantios na periferia. Fomos muito cobrados nesse sentido. Fizemos um plantio no Parque do Belém, ao lado de uma comunidade, com apoio da Globo. Levamos música, comida, oficinas. A ideia era atrair 500 pessoas. Apareceram 350 pessoas para plantar, mas nem 5 delas eram do próprio bairro. Envolvemos líderes comunitários e mesmo assim ninguém de lá foi. A maioria era de bairros nobres.
Então percebi que a escala de prioridades para o morador da periferia podia ser outra. Decidi ter autocrítica e abandonei meu pensamento pequeno-burguês “ah, é disso que eles precisam!”. Não vou empurrar o verde goela abaixo.
Você se vê ocupando algum cargo público? Tem essa ambição?
Olha, eu entendo que a política seja o caminho para as mudanças. Não podemos virar as costas para a política. Eu gostaria de ter o poder de mudar a cidade, trazer ideias e debate-las. Ajudar a formular políticas. Talvez como secretário do meio ambiente, ou algo assim.
Agora cargo eletivo, não. Não tenho estômago pra fazer campanha.
A parede verde da Avenida 23 de maio vale como compensação?
Tenho muita experiência em paredes verdes, fiz mais de 500 projetos desse tipo. Aquilo é um absurdo. Uma parede verde é como um paciente na UTI. Se você tirar da tomada, ele morre. Demanda muito cuidado.
Num país em que ninguém cuida das árvores, como vão cuidar de uma parede verde? Caem 1000 árvores num verão em São Paulo!
Um segundo ponto dessas compensações é que essas paredes verdes foram feitas com dinheiro de florestas derrubadas. No caso em questão, havia uma floresta nativa no Morumbi com 900 árvores que foi derrubada por uma construtora, o que gerou uma compensação ambiental no valor de R$13 milhões, para que fossem plantadas 26 mil árvores de mata atlântica em 4 parques lineares da cidade.
Esse dinheiro não foi destinado a isso, mas sim para implantar paredes verdes no Minhocão e na Av. 23 de Maio. Só que há uma questão: uma parede verde de 750 metros quadrados equivale a uma árvore adulta, tipo uma figueira brava, em termos de serviços ambientais. Fora que uma árvore tem raízes no lençol freático, carbono na lenha. É outra coisa.
Por metro quadrado de parede verde a empresa que presta o serviço de implantação cobra R$ 890. 750 metros são quase R$ 600 mil. Com R$ 600 mil, quantas mudas de figueiras bravas a R$ 200 não conseguimos comprar? 3000 árvores! Quantos milhões de metros quadrados de parede verde são necessários para substituir uma floresta? A conta jamais fecha.
Para mim, as paredes verdes apenas se justificam quando partem da iniciativa privada e não envolvem compensação ambiental.
Quais são suas metas? Você as tem? Ou sai plantando a esmo?
A gente tem metas. Mas sem estrutura as metas são falíveis.
Não penso em montar uma ONG, isso demandaria muito dinheiro e tempo. Vejo ONGs como um veículo meio retrógrado.
Precisamos é acabar com o estigma de que quem trabalha com meio ambiente é hippie, mal pago, etc. Quem faz um bom trabalho deve ser bem pago por isso.
Vira e mexe recebo pedidos “Vem plantar aqui no meu bairro?”. Minha vontade é de responder “Claro, mas você vai pagar meu mercado do mês?”
Quando falo de estrutura, penso em buscar parceiros (empresas) que estejam interessados em melhorar a cidade. E que juntos consigamos criar um cronograma de plantios. Quero que os plantios vinguem, funcionem, então precisamos focar em qualidade cada vez mais. Já estamos formatando isso. Queremos buscar espécies variadas, e não as tradicionais de viveiros. Quero deixar um legado para o futuro, dar exemplo para outras cidades do mundo localizadas em zona tropical.
Quero que seu filho possa ir brincar na praça e provar um fruto do cambuci, ou subir num araçá. Que conheça a textura do pau-jacaré. Espero que essa diversidade esteja ao alcance de todos os paulistanos e que eles compreendam que ela lhes pertence. É uma herança de valor.
Quão perto estamos dessa realidade que você sonha?
Penso que daqui a 10 anos as coisas estarão bastante diferentes. Nossa meta é ter 300 florestas de bolso. São Paulo é uma megalópole única, sinto que temos boas condições de fazer essa mudança de paradigma.
Você vem falar no Festival Path 18? Já posso contar com você, mesmo o evento sendo em abril do ano que vem?
Tenho uma filha de um ano e meio, não vou a lugar nenhum (risos). Vambora.
Fonte: atomo.cc / Por Rafael Vettori
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